Não era tarde da noite, porém era tarde para se chegar em casa. E chovia, uma garoa fina que vinha caindo desde a aurora, trazendo consigo um vento fraco. Se eu pudesse reconhecer temperaturas, acredito que estava frio, e que o ar em movimento era mais gélido que o beijo da morte.
Morte. Beijo. Lábios que tocam suavemente os lábios mortais, e em uma última demonstração de amor, os privam das dores e desesperos deste plano terreno. Não há mais angústias, não há mais o que temer. Um beijo que encerra o ciclo iniciado pelos progenitores, que também se uniram por um beijo. É o mesmo beijo que a mãe dá ao filho quando este nasce. Um beijo que te desprende das correntes do passado, e te lança às embarcações do futuro, onde serás livre para navegar pra onde e como quiser.
Este beijo vai te tirar o Sol, vai te tirar o ar, vai te tirar a vida. Esqueça o que são sentimentos, pois estes não terá mais, e assim evitará as dores. Nunca envelhecerá e nunca sofrerá de doença. Vencerá a morte, assim como eu venci.
Não é tarde da noite, mas ainda assim é tarde para chegar em casa, tens uma filha a te esperar. Esqueça-a. Estou tirando a mãe desta menina. Ela não vai dormir por várias noites, perguntando-se onde está a mãe adorada. Você não vai dormir noite alguma, e seu único desejo maternal é o de saciar a fome e a sede, com carne e sangue.
Deixe-me beijar-te. Sinta a vida se esvair, e a noite tomar conta de tudo o que há dentro de você. De tudo o que há dentro de nós.